Selo Biocombustível Social

Manter a floresta em pé virou a aspiração do mundo para a Amazônia em meio aos riscos climáticos representados pelo desmatamento na maior floresta tropical do planeta, mas simultaneamente há o desafio de melhorar as condições de vida da população local. Uma das alternativas que mostram que é possível conciliar as duas demandas é a produção de biocombustíveis, especialmente o biodiesel.

“Experimentei recentemente uma revolução na minha vida em termos econômicos. Hoje eu tenho a minha casa bem estruturada, carro. Não imaginava que um dia conseguiria ter a situação econômica que tenho”, conta Luane Alves Penha, agricultora e produtora de açaí na cidade de Mazagão, no Amapá. “A situação da família melhorou a partir do momento em que aprendemos a produzir preservando a natureza”, acrescenta a proprietária de um terreno de 50 hectares (500 mil m2) onde produz açaí junto com outras culturas como mandioca, coco, abacaxi, banana, limão, abóbora e milho.

Luane, que vive com o marido e tem três filhos, explica que a mudança veio há dois anos, quando se associou a uma cooperativa local de alimentos chamada Bio+Açaí, que atende de forma contínua 812 famílias no Amapá e no Pará e oferece assistência técnica à produção, além de garantir a compra de todo o açaí dos cooperados.

“Antes tínhamos muita incerteza. Produzíamos um pouco, mas desanimava porque não tinha pra quem vender”, diz a agricultora. “Hoje conseguimos ter o retorno econômico. A renda com o açaí ficava em torno de R$ 1.200. Agora, com a assistência técnica que recebemos, a produção aumentou e nossa renda exclusivamente com o açaí mais que dobrou. Fora o que conseguimos com a produção das outras culturas”, diz Luane, destacando que parou de derrubar outras espécies de árvores no seu terreno para trabalhar apenas com açaí, prática que era habitual. “Aprendi que as outras árvores ajudam a proteger o açaizal contra pragas e ainda me proporciona renda extra.”

O vetor que possibilita a cooperativa Bio+Açaí de dar a assistência técnica e financeira a Luane e outras 811 famílias é o programa Selo Biocombustível Social, gerido pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar. Criada em 2004, a iniciativa tem ganhado mais adesão com o aumento da mistura do biodiesel no diesel ao longo do período e o entendimento de que o desenvolvimento sustentável na Amazônia passa pelo fortalecimento da bioeconomia.

“Talvez vocês não acreditem, mas antes desse projeto chegar até mim, com as empresas de biodiesel financiando cooperativas como a que faço parte, era difícil manter uma residência digna. Antes, quem passava por aqui vinha para explorar os recursos e a gente. Seringueiros, madeireiros, palmiteiros. Agora vejo uma lógica diferente”, diz João Alves Duarte, agricultor que possui um terreno de 40 hectares em Afuá, no arquipélago de Marajó, no Pará. Ele tem esposa e seis filhos.

As empresas a que o agricultor paraense se refere são produtoras de biodiesel que seguem as regras do Selo Biocombustível Social para obter acesso a uma fatia maior de compradores. Como o objetivo é garantir a participação da agricultura familiar nessa cadeia produtiva, está estabelecido pelo governo federal que 80% do volume de biodiesel comercializado no país deve vir de usinas que tenham o selo.

“O biodiesel é um mercado de bilhões e o selo exige uma obrigatoriedade das unidades produtoras de biodiesel a aportar um percentual dessas aquisições na agricultura familiar”, explica a diretora de inovação para produção familiar e transição Agroecológica do Ministério do Desenvolvimento Agrário, Vivian Libório de Almeida, ressaltando que se trata de um mercado regulado e, por isso, 80% do mercado é reservado para quem possui o selo. “Nos últimos cinco anos, o Selo Biocombustível Social já conseguiu canalizar para a agricultura familiar mais de R$ 30 bilhões. Só no último ano foram mais de R$ 6 bilhões.”

Os bilhões mencionados pela diretora do ministério vieram do setor privado, mais especificamente das produtoras de biodiesel, que precisam dar as contrapartidas para manter o selo. Esse dinheiro, segundo Almeida, se reverte na aquisição de matéria-prima e produtos dos agricultores familiares, fomento e doações que envolvem equipamentos e elementos que contribuem para aumentar a produtividade, como a assistência técnica que ajudou Luane, a agricultura de Mazagão, e João, do arquipélago do Marajó, a melhorarem a produção em suas terras.

“As empresas privadas fazem o aporte de recurso por meio das cooperativas ou diretamente para os agricultores”, afirma a diretora do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Ela informa que, atualmente, 60 mil famílias são atendidas pelo programa.

André Lavor, cofundador e CEO da Binatural, produtora de biodiesel que possui o selo, afirma que repassa, por ano, aproximadamente R$ 14 milhões para agricultores familiares de todo o Brasil por exigência do programa.

“Pelo aspecto econômico, precisamos ter o selo para participar dessa grande fatia de 80% do mercado. Pelo aspecto social, o biodiesel hoje tem um papel fundamental na distribuição de renda no país”, afirma Lavor. “Possivelmente, é o maior programa de distribuição de renda no Brasil por meio da iniciativa privada.”

Na visão do CEO da Binatural, a agricultura familiar está profundamente ligada à impactos sociais e a alimentação dos brasileiros - 70% dos alimentos que chegam às mesas das famílias no país vêm da agricultura familiar, segundo o IBGE. Por isso, ele defende que a mistura do biodiesel no diesel, hoje determinada em 14% (B14), continue sendo aumentada.

“Cada um 1% de mistura representa mais de 20 mil novos agricultores familiares que podem passar a ser atendidos pelo Selo Biocombustível Social. Se não houver o aumento da mistura, significa dizer que 21.500 agricultores familiares deixarão de ser atendidos porque não virou B15”, diz o executivo da Binatural mencionando projeções do mercado.

A mistura B15 deveria ter sido implementada no Brasil em 2023, mas tem sido adiada desde então, o que desagrada Lavor e a grande maioria dos produtores de biodiesel.

Um ponto importante destacado tanto pelo CEO da Binatural quanto pela diretora do Ministério do Desenvolvimento Agrário é que a produção dos agricultores comprada pelas empresas ou cooperativas financiadas por elas não necessariamente precisa subsidiar a produção do biodiesel - o principal insumo no Brasil é a soja -, embora boa parte dos resíduos, como o caroço do açaí e de outros frutos, esteja sendo progressivamente utilizada para produção de biocombustíveis.

“O olhar do Selo Biocombustível Social é estimular a produção de alimentos e também ajudar no processo de transição energética. Mas não tem uma prioridade ou outra e não interferimos na utilização final do que compram dos agricultores”, comenta Almeida. “A ideia é que pela cadeia consolidada do biodiesel, que é majoritariamente produzido por meio da soja, o programa estimule a diversificação e reconheça a complexidade da agricultura familiar. Como gestores do selo, não queremos estimular monoculturas”, adiciona.

Nesse contexto, um dos objetivos do programa é aumentar a entrada de pequenos agricultores de Norte e Nordeste e da região conhecida como semiárido brasileiro, que inclui o norte de Minas Gerais.

Não seria inteligente olhar para a Amazônia como algo homogêneo”

Atualmente, o Selo Biocombustível Social determina que 15% dos agricultores familiares beneficiados sejam dessas regiões para que o programa seja um vetor forte na promoção do desenvolvimento regional e na geração de renda em cidades mais carentes. “O potencial de transformação é enorme. Eu vi pessoalmente propriedades onde produtos que podem virar alimentos ou biocombustíveis ficam no chão. Com mais incentivos e garantia de compra, haverá menos desperdício e mais estímulo para manter a floresta em pé”, acredita Lavor.

Para o professor e diretor-adjunto do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Pará (UFPA), Luis Adriano Santos do Nascimento, o selo é, de fato, um mecanismo importante para a inclusão social de produtores familiares na Amazônia hoje ao inserir as comunidades no mercado de biocombustíveis de forma vantajosa e fiscalizada. Ele ainda indica que o biodiesel, em conjunto com outras fontes de energia como a solar, pode exercer um papel crucial na diminuição do isolamento energético de centenas de comunidades no Norte brasileiro.

“Fala-se muito do volume gigantesco de biodiesel que pode ser produzido a partir do melhor aproveitamento dos recursos que temos na Amazônia para abastecer o mercado, mas em pequena escala e junto com outras fontes de energia renovável, também é uma alternativa para integrar centenas de comunidades que hoje dependem de geradores movidos a diesel e que muitas vezes são financeiramente inviáveis.”

Apesar das vantagens, o especialista da UFPA, atualmente a universidade que mais possui pesquisas sobre a Amazônia Legal, pede cautela com um termo que se popularizou nos últimos anos que coloca a Amazônia como um “pré-sal verde”, em referência ao potencial da floresta para a produção de biocombustíveis, especialmente a partir do óleo de palma - planta que não é nativa do bioma, mas se adaptou bem e é vista com potencial relevante para permitir o aumento da produção direto de biodiesel nos Estados amazônicos, sobretudo no Pará, que concentra 98% da produção do óleo de palma no país.

“Não gosto dessa expressão. Primeiramente, é preciso entender que o biodiesel é um combustível renovável que tem origem em espécies vegetais e demanda áreas extensas de cultivo para que tenha impacto na matriz energética. Não por acaso, a principal fonte desse combustível no Brasil é a soja, que já possui essas áreas extensas”, diz.

Conforme explica o professor, o potencial da palma pode ser melhor aproveitado dentro da Amazônia, inclusive porque pode ser plantada em áreas degradadas, o que tende a ajudar na restauração da floresta e contribui positivamente se for manejada de forma sustentável. Mas ele pondera que, para que a Amazônia gere o impacto relevante para a produção direta de biodiesel a ponto de ser chamado de “pré-sal verde”, seriam necessárias áreas enormes de monocultura, o que ele vê com ceticismo.

“Quem fala em pré-sal verde para passar essa magnitude de comparar ao pré-sal do petróleo precisa considerar que a floresta não é homogênea. Não vejo nenhum problema em plantar mais palma para tirar o óleo para o biodiesel, mas a floresta tem vários outros elementos que geram óleo para outros setores. Por exemplo, a andiroba para a produção cosmética, e a castanha do Pará, que fornece um óleo que hoje já chamam de azeite de oliva amazônico”, diz. “Não seria inteligente olhar para a Amazônia como algo homogêneo e querer usá-la excessivamente para fins de biocombustível.”

O presidente da Associação Brasileira de Palma (Abrapalma), Victor Almeida, afirma que é possível aumentar consideravelmente a produção do biodiesel a partir do óleo de palma na Amazônia sem prejudicar a biodiversidade da floresta.

“Atualmente, a palma tem uma participação pequena de 1% a 2% na produção de biodiesel no Brasil, principalmente devido à localização das usinas de biodiesel próximas às áreas de soja. No entanto, com a meta de aumentar a mistura de biodiesel para 20% nos próximos cinco anos sob a Lei do Combustível do Futuro, a palma surge como uma alternativa crucial”, comenta.

Ele ressalta o melhor rendimento em termos de produtividade como uma das justificativas para investir em mais plantações de palma na Amazônia. “Para atingir essa meta usando apenas soja, seriam necessários de 7 milhões a 8 milhões de hectares adicionais, enquanto a palma de óleo precisaria de apenas 1 milhão de hectare para produzir a mesma quantidade de óleo.”

Em relação à sustentabilidade ambiental, o presidente da Abrapalma defende que as palmeiras cultivadas não precisam ser derrubadas para gerar o óleo durante aproximadamente 35 anos e absorvem gás carbônico, além de haver permissão para plantar somente em áreas degradadas até 2008. Isso, em tese, evita o desmatamento para aumentar o cultivo de palma e protege a floresta contra a exploração predatória do óleo de palma observada na Indonésia.

No aspecto socioambiental, um estudo encomendado pela Abrapalma à Fundação Solidaridad aponta que o setor tem potencial para dobrar a área plantada no Pará sem causar desmatamento e com foco na recuperação de áreas degradadas e subprodutivas, o que pode beneficiar cerca de 25 mil famílias produtoras de pequena e média escala.

“O estudo confirma que o óleo de palma pode ser o motor de uma bioeconomia inclusiva na Amazônia, pois há mais de 1,1 milhão de hectares aptos, dos quais um terço bastaria para dobrar nossa área plantada e integrar quase 25 mil famílias produtoras com renda, assistência técnica e segurança de mercado garantidas”, diz Victor Almeida.

Segundo o ambientalista e diretor-geral do Instituto Peabiru, João Meirelles, chamar a Amazônia de pré-sal verde não faz sentido. “É o tipo de comparação que o brasileiro adora, mesmo que não se justifique muito”, diz. “Mas a palma já gera benefícios sociais na Amazônia há 20 anos. Também já ajudou a tirar muitos agricultores familiares da subsistência”, acrescenta. “É uma alternativa viável para ajudar na inclusão social dentro da região e ambientalmente segura. Existe mão de obra, tecnologia e terra disponíveis. O que falta são empresas dispostas a aproveitar esse potencial da forma correta.”

Rafael Vazquez – Valor Econômico

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